sábado, 7 de março de 2009

Charles Clarence Beck e o Capitão Marvel





Por Waldomiro Vergueiro


No início da década de 40, as revistas de histórias em quadrinhos começavam a iniciar sua ascensão apoteótica no gosto dos jovens leitores norte-americanos. Dois anos antes, o primeiro super-herói dos quadrinhos, Superman, havia ganho os ares da América, abrindo o caminho para legiões de outros com poderes cada vez mais mirabolantes. Aquele que mergulharia mais fundo no imaginário popular, no entanto, só apareceria no segundo número da revista Whiz Comics, publicada pela editora Fawcett, sendo colocado em circulação em fevereiro de 1940. Nele, surgiria pela primeira vez um super-herói de roupa totalmente vermelha, com uma capa branca curta e um relâmpago dourado desenhado no peito do uniforme, tendo sua imagem física moldada na do ator cinematográfico Fred MacMurray: o Capitão Marvel. Na realidade, seu nome seria inicialmente Capitão Trovão, mas foi modificado para Marvel pouco antes do lançamento da revista.


O novo herói tornou-se logo um enorme sucesso, ultrapassando rapidamente em vendas o criador do gênero. E isso foi bastante lógico. Enquanto proposta temática, ele era muito mais criativo e interessante que seu predecessor. Nas histórias do Capitão Marvel, a arte caricaturesca de Charles Clarence Beck casou-se muito bem com o roteiro original de Bill Parker, que trazia elementos mágicos, míticos mesmo, até então ainda não explorados no universo dos super-heróis. Mesmo quando Parker abandonou a série e foi substituído por outros roteiristas, dentre os quais se destaca o prolífico escritor Otto Binder, responsável pelo roteiro de mais da metade das histórias do Capitão, essa relação de complementaridade jamais deixou de existir.


A gênese do herói é simples: um dia, o jovem Billy Batson, um pobre órfão que trabalhava como jornaleiro, estava vendendo seus jornais no metrô da cidade quando uma figura misteriosa o chamou e mandou que o seguisse. Billy fez isso e logo se viu adentrando um túnel, nas paredes dos quais estavam estátuas horrorosas que representavam os sete pecados capitais. Passando esse corredor, o jovem chegou a uma grande câmara, na qual, sobre um pomposo trono de pedra, estava sentado um ancião de longas barbas brancas. O velho apresentou-se como Shazam, um antigo mago egípcio que havia lutado contra as forças do mal desde tempos imemoriais e que agora buscava um sucessor. Billy deveria assumir o seu lugar. Assustado, o garoto perguntou-lhe como poderia fazer isso e o mago ordenou que pronunciasse seu nome, Shazam. Ao gritar pela primeira vez essa palavra, um relâmpago, acompanhado do som de um poderoso trovão, o atingiu – e ele se transformou no mortal mais poderoso da Terra. E o resto é história.


O Capitão Marvel possuía os poderes de uma miscelânea de personagens míticos e históricos, cujas iniciais, em acrônimo, formavam a palavra mágica Shazam: de Salomão, recebeu a sabedoria; de Hércules, a força; de Atlas, o vigor físico; de Zeus, o poder; de Aquiles, a coragem; e, de Mercúrio, a velocidade. No entanto, mesmo transformado em um hercúleo personagem, ele ainda trazia consigo muito da inocência do jovem Billy, uma aparente contradição que talvez tenha representado a raiz de todo o seu fascínio para os leitores. Quem, entre os milhões de jovens que se deliciaram com sua leitura desde o seu início – entre os quais se inclui o autor deste texto -, jamais se viu gritando a palavra mágica e secretamente acalentando a esperança de que um raio o transformasse no Capitão Marvel? Afinal, nada se tinha a perder...



“Primeira aparição de Dr. Silvana em Whiz Comics 2 (1940)
Mas o sucesso do personagem não se deveu apenas a esse aspecto de identificação de seus jovens leitores. Em muito, colaboraram também as bem humoradas histórias elaboradas por seus roteiristas, principalmente Otto Binder, a arte característica de C. C. Beck e uma impressionante galeria de vilões criada especialmente para enfrentá-lo, uma das melhores que já povoaram os quadrinhos (o único super-herói que rivaliza com ele, em termos de originalidade de seus inimigos, é com certeza o Batman). Dos adversários do Capitão Marvel, dois se destacam: Thaddeus Bodog Sivana, o Dr. Sivana (no Brasil, numa escolha muito mais feliz que o nome original, traduzido por Dr. Silvana... ), descrito como o cientista mais maluco do mundo – e ele provavelmente o era, mesmo -, que deu ao Capitão Marvel seu apelido mais famoso, o de Big Red Cheese; e Mr. Mind (Sr. Cérebro, no Brasil), um vilão misterioso que apenas depois de muitos anos se descobriu ser, na realidade, uma minhoca verde de óculos, que se comunicava utilizando um amplificador de voz. Hilária. Isto, sem contar coadjuvantes pitorescos como Tawky Tawny (em português, batizado como o Sr. Malhado), um tigre falante, os Lieutenants Marvel, o Uncle Marvel e os outros dois membros da chamada Marvel Family, Mary Marvel e Capitão Marvel Jr., que não ficam devendo em nada ao chefe da família e mereceriam uma matéria só para eles. Tudo isso fez do Capitão Marvel o maior sucesso editorial da década de 40, originando vários títulos de revistas, programas de rádio, seriados cinematográficos e uma variedade de produtos que sempre encontravam ávido e sedento público consumidor.


Mas, infelizmente, muito mais que a genialidade dos personagens, o que move o mercado de quadrinhos são as perspectivas comerciais que os envolvem. E isso, muitas vezes, gera as suas vítimas. O Capitão Marvel foi talvez a pior delas. E a mais triste também. Desde seu início, suas vendas bateram de longe as de seu maior concorrente, o Superman. Na década de 40, o primeiro chegou a vender 2 milhões de revistas mensais, enquanto o segundo, em seus momentos de pico, em pouco ultrapassou mais de 1 milhão e meio. Assim, em 1941, a National Periodical, nome pelo qual era então conhecida a DC Comics na época, iniciou um processo judicial contra a editora do Capitão Marvel, argumentando que este representava um plágio descarado de seu principal personagem. A batalha judicial prolongou-se durante anos, encerrando-se em 1953 com um acordo proposto pela Fawcett, que havia decidido, devido às baixas vendas de sua revista, abandonar a publicação de histórias em quadrinhos e dedicar-se a outras atividades. Assim, nunca se soube qual seria a decisão final da justiça norte-americana a respeito da questão. Mas, para os milhões de leitores que se haviam deliciado com as aventuras do personagem durante a década de 40, isso era irrelevante. Eles já haviam consagrado sua originalidade.


Devido a esse acordo, o Capitão Marvel mergulhou no limbo durante o restante dos anos 50 e todos os anos 60 no mercado norte-americano, retornando a ser veiculado somente durante a década de 70. No Brasil, no entanto, ele foi republicado normalmente durante os anos 60, pela Editora Rio Gráfica, do Rio de Janeiro. E, no Reino Unido, teve até um substituto, o Marvelman, atualmente conhecido como Miracleman.


Em 1973, a DC Comics, a editora responsável por sua retirada extemporânea de cena, adquiriu os direitos da personagem e retomou sua publicação nos Estados Unidos. No entanto, a nova revista teve de se chamar Shazam, porque a agora Marvel Comics era a detentora da marca Captain Marvel.


Quando retornou, o personagem era ainda desenhado por seu maior ilustrador, C. C. Beck, que se manteve, à frente do título durante apenas nove números e por pouco tempo conseguiu dar continuidade às características anteriores do herói. No entanto, isso seria modificado posteriormente, com a publicação de outras histórias, a incorporação do personagem ao chamado Universo DC e, finalmente, a hecatombe quadrinhística proporcionada por Crisis of Infinite Earths, que consagrou a irritante mania dessa editora de mudar a origem e muitas vezes as características de seus heróis, de forma a adaptá-los a sua estratégia de marketing.


Em anos recentes, algumas propostas inovadoras buscaram dar ao Capitão Marvel um merecido destaque, como aconteceu no título Power of Shazam, escrito e desenhado por Jerry Ordway e na mini-série Kingdom Come, de 1996. O mesmo ocorreu com a graphic novel sobre o herói, Shazam! The Power of Hope, também desenhada por Alex Ross, com textos de Paul Dini. No entanto, é triste reconhecer que ele hoje não passa de um personagem de segunda categoria, estando a quilômetros de distância do mortal mais poderoso do mundo proposto por Parker e Beck (*). O último, responsável pela versão gráfica definitiva do herói, consagrou um estilo claro e simples que facilitou o trabalho dos artistas que o seguiram, estilo esse que está marcado na memória de todos os leitores. Infelizmente, seu contato com o herói não teve continuidade no período DC, sendo rapidamente encerrado devido a desentendimentos com os editores. Seu estilo de desenho parecia não combinar mais com as histórias atuais do personagem. E talvez seja melhor assim.


* Charles Clarence Beck, depois de um período de merecida semi-aposentadoria na Flórida, faleceu em 22 de novembro de 1989.

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