Adolfo Caldas
Freire
No ano de graça de
1993, lancei, na Livraria Civilização Brasileira, do Shopping Iguatemi, em
Salvador, Bahia, um livro sobre as histórias em quadrinhos intitulado:
Quadrinhos, Portal de Encantamento.
O espaço físico e pequenas mordomias (incluindo doses generosas de taças cheias de vinho) foram patrocinados pelos donos da livraria -, que, anos depois faliram, por não suportar a concorrência com a internet.
O espaço físico e pequenas mordomias (incluindo doses generosas de taças cheias de vinho) foram patrocinados pelos donos da livraria -, que, anos depois faliram, por não suportar a concorrência com a internet.
Dentre os presentes, fãs conhecidos de HQs em Salvador, Bahia: Carlos Modesto, Aimar Aguiar, Tom Mix (não era o cowboy americano, mas um baiano cujo pai lhe deu este nome em homenagem ao ator) e muitos, muitos outros. Também, um número considerável de mulheres, que se costuma dizer não gostam de quadrinhos; elas lá estavam, não somente atraídas pelo autor (rs.,rs.,rs.), mas principalmente para prestigiar o lançamento do livro. Havia, ainda, os frequentadores e clientes contumazes, pegos incidentalmente, que participaram do evento, inclusive, comprando o livro. Lógico que também se fizeram presentes os amigos e meus familiares.
Na mesma livraria, havia
lançado antes (1991) um
livro de medicina
com 959 páginas.
Entretanto, houve um visitante que se destacou: Adolfo Caldas Freire. Vestia um terno completo impecavelmente branco (paletó, camisa, calça e sapatos), e se apresentou como um dentista que amava as HQs. Foi o primeiro da fila e comprou o primeiro exemplar do livro. Batemos um longo e animado papo, quando demonstrou possuir conhecimentos profundos sobre as histórias em quadrinhos. Também fiquei sabendo que possuía uma enorme e invejável coleção de gibis das décadas de trinta/quarenta/cinquenta garimpados meticulosamente, ano a ano, e guardados com extremo carinho
Apesar de tudo, a nossa amizade que prometia ser promissora, não deslanchou. Por muito tempo, perdemos
o contato, e ficamos sem nos ver. Anos depois, Adolfo enviou-me uma carta
pedindo desculpas pelo distanciamento não intencional, e ofereceu-se para
colaborar com o PORTAL Zine, de papel. Sugeri que fizesse um artigo sobre os
gibis da Primeira Era de Ouro, publicados no Brasil. E ele o fez. Funcionou
como o seu canto de cisne, pois logo depois faleceu vítima de um fulminante infarto
do miocárdio.
O seu artigo foi
elogiado por todos que o leram. O seu tom nostálgico enfeitiça. Funciona como se cada um de nós tivéssemos tido um "seu" Calina. Trata-se de uma narrativa
inteligente e documental que leva o leitor a vivê-la com encantamento. Na
verdade, o conteúdo simples, direto e mágico cativou os leitores que tiveram
a oportunidade de ler o relato que publiquei na Edição de São João do PORTAL
Zine, 45, de abril-maio-junho de 1993. Estou reprisando-o, na íntegra, para você leitor amigo do blog, também desfrutar
de sua leitura. (Queiroz)
1 – O SEBO DE SEU CALINA
Havia na Baixa de Sapateiros, imprensado entre a Sapataria Onça e uma farmácia, em frente à ladeira da Saúde,
uma portinha - apenas uma portinha - com uma tabuleta na bandeira: LIVROS NOVOS
E USADOS, CADERNOS, ETC. Devo salientar que nunca vi alguém, pai ou garoto, lá
entrar, para comprar livros ou cadernos. Era o SEBO DE SEU CALINA, nome dado, é
óbvio, por nós, seus assíduos freqüentadores, garotos de 11 e 14 anos..
Não sei há quanto tempo o SEBO DE SEU CALINA existia,
quando começou ou quando terminou. Eu o conheci na década de 40, mais
precisamente, em fins de 1943,. Morava então, na Fonte Nova, em pleno largo.
Ninguém pode imaginar como aquilo era diferente, barro e mato onde hoje é o
Estádio da Fonte Nova. O famoso Circo Fekete armava sua barraca bem em frente á
minha casa, no. 111, da Rua Joaquim Maurício - ladeira da Fonte das
Pedras.
Eu tinha vindo da Rua Carneiro de Campos, de um sobrado,
ao lado do Colégio Ypiranga, onde morou (ou morreu?) o poeta Castro Alves.
Vivia isolado, sem amigos a não ser meus gibis, comprados nas bancas, logo
quando saiam. O único contacto com outros garotos era no Colégio Estadual da
Bahia e lá não havia gibis. Quando meu pai (grande leitor da revista X-9),
mudou-se para a Fonte Nova, um novo mundo abriu-se para mim. Conheci José
Afonso (ainda vive? Por onde andará?) meu grande amigo de infância, apaixonado
pelos quadrinhos, embora fosse diferente de mim. Ele comprava e vendia conforme
as necessidades ditadas pelas matinês. Eu nunca vendi nada e só comprava o que
era para guardar, conhecia de longe os bons desenhos. Nunca comprei nada dos
desenhistas nacionais.
Por intermédio do meu amigo Afonso, que já morava na
Fonte Nova, conheci o SEBO DO SEU CALINA; a tal livraria de uma porta só não
era mais do que um corredor com um balcão atravessado ao meio do comprimento.
Após o balcão, que nunca era ultrapassado, um mundo de pacotes empoeirados em
uma sujeira de meter medo.
SEU CALINA comprava e vendia gibis. Era esse, realmente, o
seu negócio. Não sei se ele vivia apenas com esse rendimento. Não, deveria ser
um velho aposentado que procurava ter uma ocupação para não ficar em casa
enchendo o saco dos outros.
De vez em quando, o
velhote colocava à venda verdadeiras preciosidades. A princípio ele não sabia
julgar o valor das edições, mas com o tempo, ficou sabendo que as mais antigas
eram mais valiosas, independentemente do estado de conservação. Mas como o
velhote explorava a meninada! Um gibi recém saído (1$500) ele pagava $200 ou
$500 e revendia por 1$000. Quando o gibi era antigo, vendia por um preço acima
do marcado na capa.
Nas férias escolares, eu comparecia com maior frequência
ao sebo de SEU CALINA, na esperança de encontrar alguma coisa dos anos
passados, afinal estávamos em 1943 e muita coisa das décadas de 30 e 40 eram
desconhecidas para mim. Eu não era mais do que um garimpeiro à procura daquelas
preciosidades que sabia que existiam.
Muito importante era, também, a abordagem aos que chegavam
para vender, antes que eles entrassem no sebo. Nesse caso,
havia vantagem para ambas as partes.
Da Fonte Nova até a Baixa dos Sapateiros, era um pulo.
Pela Saúde, logo eu estava lá. Era, também, o meu caminho quando eu ia à matinê
e ao Taboão.
Muita coisa eu comprei de SEU CALINA, um terço do que
tenho e guardo até hoje.
Corria o ano de 1944 e eu naquela vidinha boa, juntando aos
poucos o que conseguia de melhor. Aconteceu que certa ocasião, algum
colecionador, talvez dali mesmo do Pelourinho, resolveu vender sua coleção,
mesmo sabendo que seria roubado pelo velhote sabido. Afinal, só havia aquele
sebo e uma banca no Taboão. Ao chegar ao sebo, certa tarde, verifiquei, num
velho armário, com porta de vidro, que ficava no corredor, vários gibis em
exposição. Ali estavam, dependurados, exemplares do GURY, GIBI MENSAL, GLOBO
JUVENIL MENSAL, todos de 1940 e 1941, em excelente estado de conservação.
Quase enlouqueci. Quantos eu ainda não tinha. Era um garoto pobre, não tinha
mesada. Isso aconteceu por ocasião de minhas férias de fim de ano. Tive que cortar
as matinês, inclusive a dos domingos, cortar o picolé, o sorvete e tudo mais
que não fosse gibi.
Sabia que existiam muito garotos que compravam e vendiam
suas revistas, mas nunca tive aproximação com nenhum deles. Sabia, também, que
aqueles que compravam mensalmente as revistas que saiam nas bancas eram
colecionadores. Nunca conheci nenhum.
Logo o sebo entrou em decadência. Já não havia colecionadores
vendendo suas coleções. Com a aproximação do vestibular, afastei-me das revistas
e dos amigos que tinha na Fonte Nova. Não só os quadrinhos estavam entrando em
decadência como eu havia me mudado para o bairro da Calçada.Pouco havia para
comprar nas bancas. Soube depois, por acaso, que SEU CALINA havia se mudado
para o Pelourinho (outra portinha), ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos. Eu
já estava na Faculdade e me preparando para a vida profissional. No entanto,
nunca deixei de comprar as boas coisas que ainda, vez por outra, eram
publicadas pelas EBAL, RGE, etc. Até hoje. Nunca vendi nada.
Quando conheci o fanzine do Barwinkel, fiquei admirado ao saber quantos idosos, como
eu, ainda guardam suas coleções suas
valiosas coleções. Depois veio o conhecimento das edições do Cassal, do Kern, do Valdir Damaso e
muitos outros. Era voltar ao passado, aos verdes anos da minha infância querida,
quase toda preenchida pelo amor aos quadrinhos.
Era conversar através das cartas, com gente
que entendia e muito do assunto e tomar conhecimento de muita
coisa que ficou escondida no passado. Aqui em Salvador, nunca conheci sebo
algum especializado em quadrinhos ou qualquer movimento referente ao assunto a
não ser as tentativas de Gutemberg
e do Aimar, com uma exposição de
revistas de quadrinhos e um fanzine, mimeografado a álcool. Mais recentemente
(!) surgiu o magnífico PORTAL, do José
Pinto de Queiroz Filho, que pode ser considerado, realmente, o primeiro
fanzine baiano.
E um prazer ler as cartas dos leitores dos fanzines quando relatam
tudo aquilo que eu sei, que vivi ou que tenho em minha coleção. Alegra-me, também,
ao ler que alguns fanzineiros, já idosos e lidos, como eu, desconhecem, por exemplo,
a origem do As de Espadas ou
do Titan, ou do Vingador ou do Justiceiro.
Coisas elementares, mas que mostram, no entanto, a importância esclarecedora
dos fanzines. Eles estão registrando para o futuro, as jóias do passado e se
assim não fosse como os jovens tomariam conhecimento dos lindos desenhos de Alex Raymond, Hal Foster, Milton Caniff,
Frank Robbins, Hogarth e tantos outros maravilhosos artistas?
Onde andarão, hoje, aqueles garotos que naquele passado
querido garimpavam, como eu, nos sebos, nas matinês, nas bancas de revistas?
Alguns deles ainda vivem? O que foi feito de suas revistas? Será que sou o
"último dos moicanos"? O último que ainda guarda com amor e carinho
aquelas revistas adquiridas na " Era Dourada"?
2 - O GLOBO JUVENIL MENSAL
O GIBI MENSAL não foi a primeira revista em quadrinhos,
com histórias completas, que eu conheci. Foi, no entanto, a melhor de todas,
só superada pelo GLOBO JUVENIL MENSAL, que surgiu logo depois.
Muito antes de conhecer o GIBI MENSAL, já conhecia as
tiras do SUPLEMENTO JUVENIL e as histórias completas do querido MIRIM
SEXTAFERINO todos com excelentes desenhos, em contraste com os do famigerado
TICO- TICO, com os quais eu estava acostumado.
Uma noite, ao voltar do trabalho meu pai trouxe,
juntamente com o jornal, uma revista que encheu os meus olhos. A capa era
simplesmente fantástica. Um casal se defendia do ataque de vários monstros, com
suas pistolas de raios. O título da revista: O GURY. Folheá-la, foi um
deslumbramento. Páginas a cores com histórias jamais vistas. Era o GURY, no.
1, de Maio de 1940 e eu tinha nove anos.
Quando conheci (emprestados) o GIBI MENSAL e o GLOBO
JUVENIL MENSAL, logo notei a diferença. Enquanto o GURY era a
cores, o GIBI e o GLOBO JUVENIL MENSAL tinham suas páginas em
preto-e-branco, mas os desenhos...AHH!!!, as histórias, os desenhos, eram outra
coisa. A maioria, ou a quase totalidade dos desenhistas do GURY ainda estavam
no início de suas carreiras, ainda tateando.... WILL EISNER, RED CRANDAL, HENRY
KIEFER, AL BRYANT, ALEX BLUM, BOB POWELL, JOHN CELARDO e outros começavam suas
atividades.
O GURY foi, no entanto, uma ótima revista nas suas diversas
fases, com excelentes historias. Mas dizer que era "as melhores histórias
na melhor revista", é cometer injustiça. O GLOBO JUVENIL MENSAL bateu até
o GIBI MENSAL. Se compararmos as histórias dele: ZAZ-TRAZ, TUBARÃO, TRIO
PÚRPURA, COMETA, RAIO, SELO ESCARLATE, DRAGO E ROY, ANJO, ZAMBINI,
AMAN, e mais tarde, KARDAK, VINGADOR, ARQUEIRO, SUPER-HOMEM e outros, com as
do GURY, veremos que a diferença é grande. Até o GIBI MENSAL era melhor que o
GURY, pois apresentava as histórias de; TOCHA HUMANA, SUBMARINO, KA- ZAR,
ASAS GLORIOSAS, JUSTIÇA INVISÍVEL,, BOZO, CORINGA, CHAMA e outros.
Acompanhei o desenvolvimento da arte de todos aqueles
desenhistas do GIBI e do GLOBO JUVENIL mensais, até a fase em que os quadrinhos
entraram em crise.
Não podemos esquecer que o GURY recebeu verdadeira transfusão
ao publicar em suas páginas as maravilhosas histórias coloridas de MARTAN,
MORRO, DUPLA FURACÃO, REX e outras. Mais tarde, muito mais tarde, seriam
publicadas as histórias do herói que se transformaria no sustentáculo da
revista: CAPITÃO AMÉRICA, com os belos desenhos de AL AVISON e SYD SHORES e
outros.
Não custa lembrar que o Sr. Roberto Marinho, entusiasmado
com o sucesso do GIBI MENSAL, pretendia transformá-lo em quinzenal. O GIBI
seria publicado duas vezes ao mês. O que vimos, no entanto, fo o surgimento de
uma outra revista, também com 100 páginas e com histórias tão boas
ou melhores que as do GIBI.
Era realmente uma época de ouro. Além do MIRIM, MIRIM
MENSAL, MIRIM SEXTAFERINO E MIRIM DOMINICAL, tínha o SUPLEMENTO JUVENIL, GAZETA
JUVENIL: GLOBO JUVENIL TRI-SEMANAL, GIBI TRI-SEMANAL, GURY, LOBINHO. POLICIAL
EM REVISTA, CONTOS MAGAZINE e X-9 eram para nossos pais e irmãos mais velhos.
As bancas de revista (ou de jornais) eram, para nós,
verdadeiras árvores de NATAL. Naqueles belos tempos, naqueles lindos dias da
nossa infância.
A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios... Por isso, cante, ria,
dance, chore e viva intensamente cada momento de sua vida (...) antes que a
cortina se feche e a peça termine sem aplausos. (Charles Chaplin)
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