quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

PURA NOSTALGIA



Adolfo Caldas Freire

No ano de graça de 1993, lancei, na Livraria Civilização Brasileira, do Shopping Iguatemi, em Salvador, Bahia, um livro sobre as histórias em quadrinhos intitulado: Quadrinhos, Portal de Encantamento. 


O espaço físico e pequenas mordomias (incluindo doses generosas de taças cheias de vinho) foram patrocinados pelos donos da livraria -, que, anos depois faliram, por não suportar a concorrência com a  internet. 


Dentre os presentes, fãs conhecidos de HQs em Salvador, Bahia: Carlos Modesto, Aimar Aguiar, Tom Mix (não era o cowboy americano, mas um baiano cujo pai lhe deu este nome em homenagem ao ator) e muitos, muitos outros. Também, um número considerável de mulheres, que se costuma dizer não gostam de quadrinhos; elas lá estavam, não somente atraídas pelo autor (rs.,rs.,rs.), mas principalmente para prestigiar o lançamento do livro. Havia, ainda, os frequentadores e clientes contumazes, pegos incidentalmente, que participaram do evento, inclusive, comprando o livro. Lógico que também se fizeram presentes os amigos e meus familiares.


Na mesma livraria, havia 
lançado antes (1991) um 
livro de medicina 
com 959 páginas.
Entretanto, houve um visitante que se destacou: Adolfo Caldas Freire. Vestia um terno completo impecavelmente branco (paletó, camisa, calça e sapatos), e se apresentou como um dentista que amava as HQs. Foi o primeiro da fila e comprou o primeiro exemplar do livro. Batemos um longo e animado papo, quando demonstrou possuir conhecimentos profundos sobre as histórias em quadrinhos. Também fiquei sabendo que possuía uma enorme e invejável coleção de gibis das décadas de trinta/quarenta/cinquenta garimpados meticulosamente, ano a ano, e guardados com extremo carinho  

Apesar de tudo, a nossa amizade que prometia ser promissora, não deslanchou. Por muito tempo, perdemos o contato, e ficamos sem nos ver. Anos depois, Adolfo enviou-me uma carta pedindo desculpas pelo distanciamento não intencional, e ofereceu-se para colaborar com o PORTAL Zine, de papel. Sugeri que fizesse um artigo sobre os gibis da Primeira Era de Ouro, publicados no Brasil. E ele o fez. Funcionou como o seu canto de cisne, pois logo depois faleceu vítima de um fulminante infarto do miocárdio.

O seu artigo foi elogiado por todos que o leram. O seu tom nostálgico enfeitiça. Funciona como se cada um de nós tivéssemos tido um "seu" Calina. Trata-se de uma narrativa inteligente e documental que leva o leitor a vivê-la com encantamento.  Na verdade, o conteúdo simples, direto e mágico cativou os leitores que tiveram a oportunidade de ler o relato que publiquei na Edição de São João do PORTAL Zine, 45, de abril-maio-junho de 1993.  Estou reprisando-o, na íntegra,  para você leitor amigo do blog, também desfrutar de sua leitura. (Queiroz)





Adolfo Caldas Freire




1 – O SEBO DE SEU CALINA

Havia na Baixa de Sapateiros, imprensado entre a Sapataria Onça e uma farmácia, em frente à ladeira da Saúde, uma portinha - apenas uma portinha - com uma tabuleta na bandeira: LIVROS NOVOS E USADOS, CADER­NOS, ETC. Devo salientar que nunca vi alguém, pai ou garoto, lá entrar, para comprar livros ou cadernos. Era o SEBO DE SEU CALINA, nome dado, é óbvio, por nós, seus assíduos freqüentadores, garotos de 11 e 14 anos..

Não sei há quanto tempo o SEBO DE SEU CALINA existia, quando começou ou quando ter­minou. Eu o conheci na década de 40, mais precisamente, em fins de 1943,. Morava então, na Fonte Nova, em pleno largo. Ninguém pode imaginar como aquilo era diferente, barro e mato onde hoje é o Estádio da Fonte Nova. O famoso Circo Fekete armava sua barraca bem em frente á minha casa, no. 111, da Rua Joa­quim Maurício - ladeira da Fonte das Pedras.

Eu tinha vindo da Rua Carneiro de Campos, de um so­brado, ao lado do Colégio Ypiranga, onde morou (ou mor­reu?) o poeta Castro Alves. Vivia isolado, sem amigos a não ser meus gibis, compra­dos nas bancas, logo quando saiam. O único contacto com outros garotos era no Colégio Esta­dual da Bahia e lá não havia gibis. Quando meu pai (grande leitor da revista X-9), mudou-se para a Fonte Nova, um novo mundo abriu-se para mim. Conheci José Afonso (ainda vive? Por onde andará?) meu grande amigo de infância, apaixonado pelos quadrinhos, embora fosse diferente de mim. Ele comprava e vendia conforme as necessidades ditadas pelas matinês. Eu nunca vendi nada e só comprava o que era para guardar, conhecia de longe os bons desenhos. Nunca comprei nada dos desenhistas nacionais.

Por intermédio do meu amigo Afonso, que já mora­va na Fonte Nova, conheci o SEBO DO SEU CALINA; a tal livraria de uma porta só não era mais do que um cor­redor com um balcão atravessado ao meio do comprimen­to. Após o balcão, que nunca era ultrapassado, um mundo de pacotes empoeirados em uma sujeira de meter medo.
SEU CALINA comprava e vendia gibis. Era esse, realmente, o seu negócio. Não sei se ele vivia apenas com esse rendimento. Não, deveria ser um velho aposentado que procurava ter uma ocupação para não ficar em casa enchendo o saco dos outros.

De vez em quando, o velhote colocava à venda verdadeiras preciosidades. A princí­pio ele não sabia julgar o valor das edições, mas com o tempo, ficou sabendo que as mais antigas eram mais valiosas, independentemente do estado de conservação. Mas como o velhote explorava a meninada! Um gibi recém saído (1$500) ele pagava $200 ou $500 e revendia por 1$000. Quando o gibi era antigo, vendia por um preço acima do marcado na capa.

Nas férias escolares, eu comparecia com maior frequên­cia ao sebo de SEU CALINA, na esperança de encontrar alguma coisa dos anos passados, afinal estávamos em 1943 e muita coisa das décadas de 30 e 40 eram desconhecidas para mim. Eu não era mais do que um garimpeiro à procura daquelas preciosidades que sabia que existiam.

Muito importante era, também, a abordagem aos que chegavam para vender, antes que eles entrassem no sebo. Nesse caso, havia vantagem para ambas as partes.

Da Fonte Nova até a Baixa dos Sapateiros, era um pulo. Pela Saúde, logo eu estava lá. Era, também, o meu caminho quando eu ia à matinê e ao Taboão.

Muita coisa eu comprei de SEU CALINA, um terço do que tenho e guardo até hoje.

Corria o ano de 1944 e eu naquela vidinha boa, juntando aos poucos o que conseguia de melhor. Aconteceu que certa ocasião, algum colecionador, talvez dali mesmo do Pelourinho, resolveu vender sua coleção, mesmo sabendo que seria rou­bado pelo velhote sabido. Afinal, só havia aquele sebo e uma banca no Taboão. Ao chegar ao sebo, certa tarde, verifiquei, num velho armário, com porta de vidro, que ficava no corredor, vários gibis em exposição. Ali estavam, dependurados, exem­plares do GURY, GIBI MENSAL, GLOBO JUVENIL MENSAL, todos de 1940 e 1941, em exce­lente estado de conservação. Quase enlouqueci. Quantos eu ainda não tinha. Era um garoto pobre, não tinha mesada. Isso aconteceu por ocasião de minhas férias de fim de ano. Tive que cortar as matinês, inclusive a dos domingos, cortar o picolé, o sorvete e tudo mais que não fosse gibi.

Sabia que existiam muito garotos que compravam e vendi­am suas revistas, mas nunca tive aproximação com nenhum deles. Sabia, também, que aqueles que compravam mensalmente as revistas que saiam nas bancas eram colecionadores. Nunca conheci nenhum.

Logo o sebo entrou em decadência. Já não havia coleci­onadores vendendo suas cole­ções. Com a aproximação do vestibular, afastei-me das revistas e dos amigos que tinha na Fonte Nova. Não só os qua­drinhos estavam entrando em decadência como eu havia me mudado para o bairro da Calça­da.Pouco havia para comprar nas bancas. Soube depois, por acaso, que SEU CALINA havia se mudado para o Pelourinho (outra portinha), ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos. Eu já estava na Faculdade e me preparando para a vida profissional. No entanto, nunca deixei de comprar as boas coisas que ainda, vez por outra, eram publicadas pelas EBAL, RGE, etc. Até hoje. Nunca vendi nada.

Quando conheci o fanzine do Barwinkel, fiquei admirado ao saber quantos idosos, como eu, ainda guardam suas coleções  suas valiosas coleções. Depois veio o conhecimento das edições do Cassal, do Kern, do Valdir Damaso e muitos outros. Era voltar ao passado, aos verdes anos da minha infância querida, quase toda preenchida pelo amor aos quadrinhos.

Era conversar através das cartas, com gente que entendia e muito do assunto e tomar conhecimento de muita coisa que ficou escondida no passado. Aqui em Salvador, nunca conheci sebo algum especializado em quadrinhos ou qualquer movimento referente ao assunto a não ser as tenta­tivas de Gutemberg e do Aimar, com uma exposição de revistas de quadrinhos e um fanzine, mimeografado a álcool. Mais recentemente (!) surgiu o magnífico PORTAL, do José Pinto de Queiroz Filho, que pode ser considerado, realmente, o primeiro fanzine baiano.

E um prazer ler as cartas dos leitores dos fanzines quando relatam tudo aquilo que eu sei, que vivi ou que tenho em minha coleção. Alegra-me, também, ao ler que alguns fanzineiros, já idosos e lidos, como eu, desconhecem, por exemplo, a origem do As de Espadas ou do Titan, ou do Vingador ou do Justiceiro. Coisas elementares, mas que mostram, no entanto, a importância esclarecedora dos fanzines. Eles estão registrando para o futuro, as jóias do passado e se assim não fosse como os jovens tomariam conheci­mento dos lindos desenhos de Alex Raymond, Hal Foster, Milton Caniff, Frank Robbins, Hogarth e tantos outros maravilhosos artistas?

Onde andarão, hoje, aqueles garo­tos que naquele passado querido garimpa­vam, como eu, nos sebos, nas matinês, nas bancas de revistas? Alguns deles ainda vivem? O que foi feito de suas revistas? Será que sou o "último dos moicanos"? O último que ainda guarda com amor e carinho aquelas revistas adquiridas na " Era Dourada"?

2 - O GLOBO JUVENIL MENSAL

O GIBI MENSAL não foi a primei­ra revista em quadrinhos, com histórias completas, que eu conheci. Foi, no entan­to, a melhor de todas, só superada pelo GLOBO JUVENIL MENSAL, que surgiu logo depois.

Muito antes de conhecer o GIBI MENSAL, já conhecia as tiras do SUPLE­MENTO JUVENIL e as histórias comple­tas do querido MIRIM SEXTAFERINO todos com excelentes desenhos, em contraste com os do famigerado TICO- TICO, com os quais eu estava acostuma­do.

Uma noite, ao voltar do trabalho meu pai trouxe, juntamente com o jornal, uma revista que encheu os meus olhos. A capa era simplesmente fantástica. Um casal se defendia do ataque de vários monstros, com suas pistolas de raios. O título da revista: O GURY. Folheá-la, foi um deslumbramento. Páginas a cores com histórias jamais vis­tas. Era o GURY, no. 1, de Maio de 1940 e eu tinha nove anos.

Quando conheci (emprestados) o GIBI MENSAL e o GLOBO JUVENIL MENSAL, logo notei a diferença. Enquan­to o GURY era a cores, o GIBI e o GLOBO JUVENIL MEN­SAL tinham suas páginas em preto-e-branco, mas os desenhos...AHH!!!, as histórias, os desenhos, eram outra coisa. A maioria, ou a quase totalidade dos desenhistas do GURY ainda estavam no início de suas carreiras, ainda tateando.... WILL EISNER, RED CRANDAL, HENRY KIEFER, AL BRYANT, ALEX BLUM, BOB POWELL, JOHN CELARDO e outros começavam suas atividades.

O GURY foi, no entanto, uma ótima revista nas suas diversas fases, com excelentes historias. Mas dizer que era "as melhores histórias na melhor revista", é cometer injustiça. O GLOBO JUVENIL MENSAL bateu até o GIBI MENSAL. Se compa­rarmos as histórias dele: ZAZ-TRAZ, TUBARÃO, TRIO PÚRPURA, COMETA, RAIO, SELO ESCARLATE, DRAGO E ROY, ANJO, ZAMBINI, AMAN, e mais tarde, KARDAK, VINGA­DOR, ARQUEIRO, SUPER-HOMEM e outros, com as do GURY, veremos que a diferença é gran­de. Até o GIBI MENSAL era melhor que o GURY, pois apresen­tava as histórias de; TOCHA HUMANA, SUBMARINO, KA- ZAR, ASAS GLORIOSAS, JUS­TIÇA INVISÍVEL,, BOZO, CORINGA, CHAMA e outros.

Acompanhei o desenvolvi­mento da arte de todos aqueles desenhistas do GIBI e do GLOBO JUVENIL mensais, até a fase em que os quadrinhos entraram em crise.

Não podemos esquecer que o GURY recebeu verdadeira transfusão ao publicar em suas páginas as maravilhosas histórias coloridas de MARTAN, MORRO, DUPLA FURACÃO, REX e outras. Mais tarde, muito mais tarde, seriam publicadas as histórias do herói que se transformaria no sustentáculo da revista: CAPI­TÃO AMÉRICA, com os belos desenhos de AL AVISON e SYD SHORES e outros.

Não custa lembrar que o Sr. Roberto Marinho, entusiasma­do com o sucesso do GIBI MENSAL, pretendia transformá-lo em quinzenal. O GIBI seria publica­do duas vezes ao mês. O que vimos, no entanto, fo o surgimento de uma outra revista, também com 100 páginas e com histórias tão boas ou melhores que as do GIBI.

Era realmente uma época de ouro. Além do MIRIM, MIRIM MENSAL, MIRIM SEXTAFERINO E MIRIM DOMINICAL, tínha o SUPLEMENTO JUVENIL, GAZETA JUVENIL: GLOBO JUVENIL TRI-SEMANAL, GIBI TRI-SEMANAL, GURY, LOBINHO. POLICIAL EM REVISTA, CONTOS MAGAZINE e X-9 eram para nossos pais e irmãos mais velhos.

As bancas de revista (ou de jornais) eram, para nós, verdadeiras árvores de NATAL. Naqueles belos tempos, naqueles lindos dias da nossa infância.

A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios... Por isso, cante, ria, dance, chore e viva intensamente cada momento de sua vida (...) antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. (Charles Chaplin)





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